Para Inspirar

Derek Rabelo em “O fato de eu ser cego nunca me impediu de lutar pelo que eu quero”

O segundo episódio da décima quinta temporada do Podcast Plenae é do surfista Derek Rabelo, representando o pilar Corpo

7 de Abril de 2024



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Derek Rabelo: Quando eu contei pra minha mãe que eu queria aprender a surfar, ela falou: “Você tá de brincadeira, né?”. Mas eu insisti tanto, que ela topou me matricular numa escola de surfe. E mesmo na escola, no início, o pessoal ficou na dúvida se as aulas eram adequadas para mim ou não. Como que um cego poderia aprender a surfar?

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Geyze Diniz: Derek Rabelo nasceu sem enxergar. Mas a deficiência nunca foi um empecilho pra ele lutar pelos seus sonhos. Ele aprendeu a surfar aos 17 anos e se tornou um atleta profissional. Derek, que sofreu com a exclusão na escola encontrou o pertencimento no esporte. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

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Derek Rabelo: Eu recebi o nome Derek em homenagem ao surfista havaiano Derek Ho. O cara foi campeão mundial e é um ícone do esporte. O meu pai surfa e sonhava em ter um filho que pegasse onda também. Só que os planos dele se frustraram logo quando eu nasci. Nos meus primeiros dias de vida, o meu pai percebeu algo estranho nos meus olhos. As minhas pupilas tinham uma tonalidade azul, diferente do resto da família.

Eu fui levado a alguns médicos e diagnosticado com glaucoma congênito. É uma doença que, sem um motivo específico, causa uma pressão ocular muito grande. No meu caso, eu não enxergo absolutamente nada. Toda a minha família, inclusive os meus filhos, têm a visão perfeita. Eu acredito que Deus queria que eu nascesse assim.

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Os meus pais foram pegos de surpresa. Nenhum ultrassom na gravidez mostrou que eu tinha um problema. Quando eles receberam a notícia que eu era cego, ficaram desesperados. Quem cuidaria do meu futuro? Quem cuidaria de mim quando eles não tivessem mais aqui? 

Eles decidiram fazer de tudo pra que eu pudesse enxergar. No meu primeiro ano de vida, eu passei por três cirurgias no melhor hospital de olhos do Brasil. Cada uma era um sofrimento imensurável para os meus pais, porque eles viam a minha dor e, ao mesmo tempo, sentiam esperança. Mas nenhuma operação curou a minha cegueira. 

Crescer sem enxergar exigiu de mim e da minha família um processo de adaptação. A minha mãe tinha muito medo que eu me machucasse. Eu era uma criança hiperativa e queria fazer tudo que não era recomendável para mim, tipo subir em árvore e andar de bicicleta. 

A minha mãe, coitada, vivia correndo atrás de mim para tentar evitar acidentes. Já o meu pai encorajava o meu lado aventureiro. Ele me levava pra nadar e para andar de moto. No sítio da minha avó, a gente descia o rio flutuando em boia de câmara de ar de caminhão. 

Mas as minhas atividades favoritas eram na praia. O meu amor pelo mar surgiu desde muito pequeno. Eu nasci e cresci em Guarapari, uma cidade no litoral do Espírito Santo. Eu tenho até hoje uma prancha de bodyboard que eu ganhei de presente quando eu tinha 2 anos. O meu pai me puxava pelo leash na água e eu lembro quanto eu ficava feliz quando as ondas batiam em mim. Apesar das minhas dificuldades, eu tive uma infância muito boa, cercada de amor pelos meus pais, família e amigos. Os problemas começaram quando chegou a hora de ser alfabetizado. 

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Os meus pais fizeram questão que eu frequentasse uma escola comum, e não uma instituição adaptada para deficientes visuais. Só que três colégios recusaram a minha matrícula. Diziam que não estavam preparados para receber um aluno cego. Quando finalmente um colégio me aceitou, eu fui rejeitado por muitos alunos. Eles não queriam que eu participasse das atividades em grupo ou que eu jogasse bola com a turma, por exemplo.

Além de sofrer muito bullying, tinha uma falta de inclusão e acessibilidade gigantesca. Por volta dos 10, 11 anos, eu comecei a usar uma bengala para me locomover. Eu tinha vergonha, porque o pessoal da escola tirava sarro. Os meus livros em braile chegavam três meses depois que as aulas tinham começado. Isso obviamente atrapalhava o meu aprendizado.

Pra piorar, a maioria dos professores não facilitavam a minha vida. Eu lembro que um dia, na aula de inglês, em que eu perguntei como se escrevia “brother”. Todo mundo riu de mim e a professora nem ligou. Hoje, eu olho para trás e não tenho raiva de ninguém, mas também não tenho saudades.

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Mesmo com os perrengues, eu sou muito grato aos meus pais por eu ter frequentado uma escola comum. Os desafios contribuíram para minha jornada. Se eu tivesse estudado num colégio pra deficientes, eu acho que eu teria ficado preso nesse mundo. Os meus pais sempre quiseram que eu me adaptasse a qualquer circunstância. Talvez por isso eu nunca tenha tido pensamentos do tipo: “Caramba, eu sou um cego fracassado? O que eu vou fazer da minha vida?”. Mas o meu grande ponto de virada foi o surfe. 

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Algo dentro de mim me conecta com o oceano e com as ondas. Talvez isso venha da paixão do meu pai pelo esporte. Talvez venha do meu nome. Talvez venha do fato de que eu nasci na praia. Eu não sei, mas é uma coisa que tá no meu sangue. 

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Na adolescência, eu comecei a sentir muita vontade de aprender a surfar. Só que ninguém queria me ensinar. Aí, um conhecido que tinha uma escola de surfe me falou assim: “Eu vou receber umas pranchas adaptadas. São importadas. Quando elas chegarem, eu te ensino”. Eu me enchi de esperança. Passou um ano, mas essa prancha adaptada não chegava. Passaram dois anos e nada...

Até que eu ganhei uma prancha de presente de um amigo. Uma prancha normal mesmo. Eu pedi pro meu pai pra ir comigo pra praia, mas ele não podia, porque estava ocupado com o trabalho. Então, eu disse que ia sozinho mesmo. Ele me aconselhou a não fazer isso. Ele falou que a maré estava seca, que eu poderia me machucar e ainda quebrar a prancha. Como eu sou teimoso, fui sem ele. Dito e feito. 

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Na primeira onda que eu tentei pegar, eu caí e a prancha se partiu em dois pedaços. Graças a Deus, eu não me machuquei, mas fiquei arrasado. O meu pai me deu uma bronca, mas ele viu como eu fiquei frustrado. Um tempo se passou e, quando eu tinha 17 anos, o meu pai me levou para surfar. Era um fim de tarde e o meu pai falou: “O mar tá perfeito pra você aprender”.

Ele pegou a prancha dele e, ainda na areia, me passou algumas instruções de como ficar em pé. Depois, a gente caiu na água e ele tentou me colocar em algumas ondas. O meu pai esperava que eu ficasse de pé logo no primeiro dia, como ele fez quando ele tinha 14 anos. Mas eu não consegui. Ainda assim, eu amei a experiência e fiquei com vontade de repetir.

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Eu tentei outras vezes. Com meu pai, com meu tio, com amigos. Em nenhuma delas eu consegui realmente aprender. Até que eu decidi me matricular numa escola de surfe. A galera me recebeu super bem. Foi um processo de adaptação pra todo mundo. Pra mim, lógico, porque eu nunca vi alguém pegando uma onda.

Mas pra eles também, porque eles nunca tinham ensinado uma pessoa que não enxergava. O meu processo de aprendizado foi mais demorado do que o dos outros alunos. O meu professor, o Fabio Castor Maru, era um cara extremamente paciente. No começo, ele me levava pra água quando o mar não estava tão grande. 

Eu aprendi a surfar usando toda a minha sensibilidade da audição e do tato. Eu escuto os sons do mar, o barulho do vento e o movimento da água pra saber quando a onda está se aproximando. Foi assim também que eu comecei a aprender a hora certa de remar e aprender o movimento certo de ficar em pé na prancha.

Eu encosto a mão na parede da onda, pra entender como ela vai quebrar. Na hora, é tudo extremamente rápido, questão de fração de segundos. Com o tempo, eu fui pegando prática e esse processo ficou mais automático. Conforme eu fui melhorando, eu saí da minha zona de conforto e passei a explorar praias diferentes.

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Um ano e meio depois de começar as aulas, eu estava surfando bem melhor. Foi nessa época que surgiu o sonho do Havaí. Um grande amigo meu, o Magno Passos, todo ano ia pra lá pra competir de bodyboard. Ele me contava as histórias de uma praia em especial. Pipeline é uma onda tubular, que quebra pra esquerda e atrai surfistas de todo mundo. Só que essa onda fica em cima de uma bancada de pedras afiadíssimas. Muitas pessoas já morreram ou ficaram com sequelas graves de cair ali.

Ninguém acreditava que eu iria conseguir surfar em Pipeline, nem eu mesmo. Mas o Magno acreditava e eu decidi ir pro Havaí com ele. Eu fiz uma vaquinha e tive ajuda dos meus pais, da minha família e de alguns amigos. Vendi uns cacarecos, algumas pranchas e juntei dinheiro suficiente pra minha primeira viagem de avião.

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Um pouquinho antes da gente embarcar, um surfista profissional da minha cidade falou para todo mundo que era uma loucura. Dizia que eu iria me matar, e que eu estava sendo egoísta. Mas isso não tirou o meu foco e eu fui assim mesmo. 

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Quando a gente chegou no Havaí, eu senti que tinha algo especial naquele lugar. Ainda que eu não pudesse enxergar a paisagem, ali era o meu mundo dos sonhos. A primeira vez que eu fui à praia, eu caminhava lentamente, pra sentir a areia em volta dos meus pés, sentir a brisa do oceano, sentir o ar salgado soprando o meu rosto. Eu tocava as plantas, as flores, a água e criei na minha mente uma imagem paradisíaca do Havaí.

Mas o surfe em si, no início, não foi o que eu imaginava. Eu pensava que a gente iria chegar em Pipeline e já surfar de cara. Só que não. Tinha centenas de pessoas disputando um espaço minúsculo. Pelas vozes que eu escutava, dava para dizer que o mar estava apinhado de gente. Eu não consegui surfar nenhuma onda decente. O Magno tentava me tranquilizar, dizendo que o Havaí é assim mesmo.

Foram vários dias de frustração. Teve um que eu estava na água, em cima da prancha, e pensei: “Isso não é pra mim. Como eu vou pegar uma onda? Tá lotado de surfistas locais e profissionais. Eu sou só um surfista cego”. Quando a gente voltou pra areia, eu contei pro Magno como eu estava decepcionado. Ele me disse: “Derek, Deus trouxe a gente até aqui. Vamos orar e ele vai abrir as portas”. 

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Nós fomos a uma igreja e conhecemos pessoas que eram amigas de grandes surfistas locais. O Eddie Rothman e o filho dele, Makua Rothman, são super respeitados e realmente mandam na ilha. Eles me convidaram para ir na casa deles e o Makua me deu uma prancha de presente. Me receberam como parte da família e, no outro dia, literalmente fecharam a praia de Pipeline para mim. 

O Makua entrou comigo na água e disse pra todo mundo: “Estamos aqui com um surfista cego do Brasil. Ele vai surfar quantas ondas ele quiser. Por favor, não entrem nas ondas dele, nem atrás e nem na frente”. Todo mundo respeitou. Parece um conto de fadas, mas foi desse jeito. Eu fiquei horas ali pegando onda. Foi um dos dias mais lindos da minha vida. A família Rothman mora no meu coração. Toda vez que eu vou pro Havaí, eu sou super bem recebido e acolhido por eles. Eu, que tive uma experiência escolar de muita exclusão, me senti super incluído. O meu sentimento era e ainda é de gratidão.

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A partir dali, a minha vida mudou. Um vídeo meu surfando em Pipeline viralizou. Em algumas horas, atingiu meio milhão de visualizações. Saiu matéria sobre mim no maior jornal do Havaí. Dezenas de revistas me procuraram pedindo entrevistas. Quando eu voltei pro Brasil, participei do Caldeirão do Huck. Comecei a receber patrocínios e a viajar o mundo vivendo esse sonho. 

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Até agora, eu visitei 25 países. Um dos meus favoritos é Portugal. Eu já surfei algumas vezes em Nazaré, um lugar conhecido pelas ondas gigantes. Isso porque, depois de Pipeline, eu aprendi a pegar ondas cada vez maiores. O meu mentor nesse processo foi o surfista e grande amigo meu, Carlos Burle.

O cara teve toda paciência do mundo pra me ensinar. A maioria das pessoas achavam que seria impossível um cego pegar uma onda grande. Quem duvidou é que não me conhece o suficiente. O fato de eu ser cego nunca me impediu de lutar pelo que eu quero. Eu já surfei uns paredões de 12, 13 metros de altura. 

Outro país especial pra mim é a Austrália. Foi lá que eu conheci a minha esposa, a Madê. A gente se trombou, literalmente, logo após uma palestra que eu fiz. Ela estava passando, pisou no meu pé sem querer e pediu desculpa. No dia seguinte, ela participou de outro evento que eu fiz. A gente conversou e eu comecei a me interessar por ela. Depois de um ano, a gente estava casado. Em 2019, nasceu nosso primeiro filho, Elias Derek. Em 2022, chegou nossa princesinha, Hanna Lia. 

As crianças já entendem que eu não enxergo. Às vezes, eu estou andando em casa, e sem querer esbarro na minha filha. Ela chora e eu explico que não foi de propósito. Pro Elias, eu contei sobre a minha deficiência de uma maneira lúdica. Eu disse que o meu olho tá quebrado, que não funciona. Às vezes ele falava: “Mamãe, a gente tem que ir numa loja comprar um olho novo pro papai”.

Eu que levo eles pra escola, a pé. O meu cão-guia, a Serena, vai do lado, me guiando. A Serena está comigo há seis anos. Eu sempre fui muito independente com minha bengala, mas a Serena me deu ainda mais independência. Ela me guia em avião, trem, qualquer meio de transporte. A Serena não é um pet. Teoricamente, ela é um cão de serviço. Mas pra mim, ela é como se ela fosse a minha filha. Eu cuido dela como cuido das minhas crianças.

Toda a minha vida, hoje, tá ligada ao surfe. Eu nem estaria aqui contando a minha história se eu não tivesse começado a surfar. O esporte me deu a oportunidade de, em primeiro lugar, ter saúde. Me deu oportunidade de viajar, trabalhar, conhecer pessoas e fazer grandes amizades ao redor do mundo. Me deu a oportunidade de me desafiar, de evoluir como ser humano e de constituir uma família. O surfe me trouxe, acima de tudo, a inclusão.

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

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Para Inspirar

Eduardo Lyra em “Sua origem não define quem você será”

Na sexta temporada do Podcast Plenae, Eduardo Lyra conta como a sua própria história o inspirou a transformar o mundo em um lugar melhor.

29 de Agosto de 2021


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


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Eduardo Lyra: A minha primeira investidora foi a Patrícia Villela Marino, uma das donas do Itaú. Então eu morria de medo que ela descobrisse que meu pai era assaltante de banco. Eu não tinha contado isso pra ela porque a sociedade é meio preconceituosa, sabe? Eu preto, vindo de favela, se revelasse o passado do meu pai, aí que as portas iam fechar mesmo. 


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Geyze Diniz: Ele tem um plano ousado: colocar a miséria da favela no museu. Para muitos isso é impossível, para ele é um propósito. O empreendedor social, Edu Lyra, fundador da ONG Gerando Falcões, é um empreendedor social que tem como combustível gerar oportunidades e fazer da favela um lugar de prosperidade. Eleito pela revista Forbes como um dos jovens abaixo de 30 anos mais influentes do Brasil, ele nasceu na favela, venceu a miséria, entrou na universidade e escreveu livros.

Mais do que isso, criou uma rede de desenvolvimento social presente em mais de 300 comunidades carentes do país. Conheça a história de empreendedorismo e vontade de mudar o mundo de Edu Lyra. Ouça no final do episódio as reflexões da psicanalista Vera Iaconelli para lhe ajudar a se conectar com a história e com o momento presente. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se


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Eduardo Lyra: O lugar onde uma pessoa nasce costuma definir até onde ela pode chegar. Eu nasci numa favela no Jardim Nova Cumbica, em Guarulhos. A condição financeira da nossa família era tão abaixo da linha da pobreza que o nosso barraco tinha chão batido de terra. No banheiro, não tinha descarga, nem chuveiro. Era banho de caneca. Os meus pais, Maria Gorete e Marcio Luiz, não podiam comprar um berço pra mim. Eu dormia numa banheira de plástico azul. 


Cresci num ambiente de muita violência. Tive tios e primos assassinados. Um amigo meu chamado Edson foi morto com mais de 15 tiros, praticamente do lado da minha casa. Eu tava jogando futebol e escutei vários barulhos de tiro. Como era dia de jogo do Corinthians, pensei que era rojão. Até que ouvi e vi um monte de gente correndo e falando: “O Edson morreu! O Edson morreu!” Aquilo me revoltou. 


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A violência também estava dentro da minha casa. Quando eu tinha quatro anos, meu pai foi preso, indiciado por roubo a banco. Eu visitei ele várias vezes na prisão. Era horrível ter que ver a minha mãe sendo revistada nua, na minha frente, tendo a intimidade violada por um erro que ela não havia cometido. Ela suavizava a história, dizendo que meu pai estava ali porque era o trabalho dele.

Em São Paulo, a profissão de bandido é meio que camuflada. No Rio de Janeiro, por exemplo, o cara usa arma e fuzil no meio da rua. Lá na favela, o criminoso tentava de alguma forma separar a vida social da atividade criminosa. Não era óbvio pra mim que meu pai era bandido. Eu só descobri na verdade um dia que uma vizinha me levou pra igreja e orou assim: “Deus, ajuda o pai do Edu a sair da cadeia, a deixar de ser bandido”. 


No meu primeiro dia de aula, a professora quis socializar os alunos e perguntou: “Qual a profissão do seu pai?”. Eu respondi que o meu pai era caminhoneiro e viajava o tempo todo. Foi a melhor resposta que eu encontrei, pros amigos da classe não se afastarem de mim.


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Eu sempre fui apaixonado pelo meu pai. Adorava quando ele ficava em casa. Mas isso era raro. Quando ele não estava preso, estava em algum barraco qualquer usando droga. Tive muitos momentos de solidão com a minha mãe. A gente criou um vínculo forte e ela foi o contraponto da minha história. Minha mãe teve a coragem de me incentivar a sonhar. Na fome, no medo, na enchente, ela olhava nos meus olhos e dizia a frase que virou o meu mantra: “Não importa da onde você vem, mas pra onde você vai”.


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A minha mãe foi a maior líder que eu tive. Ela me ajudou a construir reservas emocionais pra vencer qualquer crise. Por testemunhar o sofrimento dela e da minha vó, eu prometi pra mim mesmo que eu ia ser um ponto de mudança na nossa história. Eu ia dar orgulho pros meus pais e engrandecer o sobrenome Lyra, que só saía nas páginas policiais de jornais. O meu primeiro passo para reescrever a história da minha família foi dizer não às drogas e ao crime.  


Me dediquei aos estudos e fui a primeira pessoa da família a entrar na universidade. Estudei jornalismo, não me formei, mas me eduquei e escrevi um livro chamado Jovens Falcões, com histórias de 14 brasileiros empreendedores, entre eles o youtuber Felipe Neto. O objetivo do meu livro era contar pra juventude brasileira da favela que dá pra ser mais do que traficante e bandido se você tem origem humilde. Falcão é o jovem que não se limita ao pó do chão. Ele voa. E quem voa consegue enxergar tudo de cima. Quem enxerga de cima, vê oportunidade. E quem vê oportunidade, vai lá e agarra.


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Publiquei o livro de maneira independente, fazendo parcerias com comerciantes de Poá, a cidade onde morei por mais de 20 anos. Montei uma equipe com 50 amigos e vendemos os livros de porta em porta por 9 reais e 99 centavos. Conseguimos vender cerca de 5 mil exemplares em pouco mais de três meses. 


Com o dinheiro arrecadado, fundei a Gerando Falcões, dando palestras motivacionais para alunos de escolas públicas do estado de São Paulo. Eu falava pra juventude de 14 a 17 anos não ceder à pressão social, não baixar a cabeça. Dizia pra eles deixarem pra trás a preguiça, o pessimismo e fabricarem oportunidades. Eu me lembro que numa palestra na cidade de Tiradentes, um jovem, do nada, tirou um revólver da cintura e colocou ele em cima do palco e falou: “Larguei o crime, mano, parei”. 


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Por causa da minha origem, eu fui condicionado a enxergar um mundo de escassez. Escrever um livro e vender cada exemplar a 9,99 era o máximo de oportunidade que eu conseguia enxergar. A minha visão de mundo começou a mudar quando eu fui escolhido pelo Fórum Econômico Mundial para fazer parte do Global Shapers. É uma iniciativa que seleciona jovens de 20 a 30 anos com potencial para mudar o mundo.


Eu tinha 23 anos e morava numa casa sem reboco por fora, quando fui no evento de nomeação dos brasileiros escolhidos pela iniciativa. Foi um dia simbólico para mim, porque pela primeira vez na vida eu pisei no Morumbi, aquele bairro nobre de São Paulo. O evento aconteceu na casa da empreendedora social Patrícia Villela Marino. Tinha um monte de gente da elite lá, num cenário que eu só tinha visto em filme.


Naquele ambiente de riqueza, eu poderia ter tido três reações. Vamos lá. A primeira: sentir ódio e pensar: “Pô, esses bacanas nasceram bem e eu nasci agredido socialmente”. Segunda: me sentir envergonhado por não estar tão bem vestido e ficar isolado num canto. A terceira: falar: “Maravilha, olha onde eu entrei! Agora ninguém me segura”. Eu fui na terceira. Entrei no meio dos bacanas, troquei cartão, fiz relacionamento e tive a chance de fazer um discurso de 5 minutos. 


No fim do evento, a Patrícia me chamou de canto e disse que queria fazer um seed money em mim. Na época, o meu inglês era zero e eu não entendi nada. Fiquei meio sem graça, pensando o que essa mulher quer comigo. Ela deu risada e falou: eu quero botar dinheiro em você. Pediu o meu CNPJ, que eu nem sabia o que era.


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A partir daí, tudo mudou. O meu horizonte não abriu, escancarou. A Patrícia investiu mais de 100 mil reais na Gerando Falcões. Me ajudou com gestão e me conectou com uma rede de executivos que ajudaram a estruturar o negócio social. Construí uma ponte da favela pro centro e passei a enxergar um universo com fartura e oportunidades que eu poderia levar para as favelas. Só depois do investimento eu abri o jogo com a Patrícia sobre o passado criminoso do meu pai. Ela passou a me admirar ainda mais. E eu me libertei da vergonha. 


Fiz uma releitura da minha própria vida e transformei as minhas dores em propósito. Transformar a pobreza da favela em peça de museu antes do Elon Musk colonizar Marte. Se o humano é capaz de ir pra Marte, é capaz também de construir comunidades empreendedoras, auto sustentáveis que entreguem dignidade e cidadania para as pessoas.


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Tudo que eu faço hoje é movido pelas experiências de necessidade e de falta. Meus amigos e eu não tivemos acesso a uma agenda de esporte e atividades culturais na nossa comunidade. A gente também não tinha cursos profissionalizantes à nossa disposição. Isso levou muita gente pra criminalidade. Então, a Gerando Falcões se tornou um ecossistema de desenvolvimento social que entrega serviços de educação, de desenvolvimento econômico e de cidadania.

A gente atua em algumas pontas. A primeira é trabalhar com educação por meio de esporte, cultura para crianças e adolescentes e qualificação profissional pra jovens e adultos para as pessoas terem uma alternativa à criminalidade. Na outra, inserimos também egressos do cárcere no mercado de trabalho pra esses caras poderem sair do crime.

Essa foi uma dor que veio de ver meu pai, uma pessoa que eu amo, em um presídio deplorável. Faz mais de 20 anos que ele largou o crime, se tornou um homem de fé e jamais voltou atrás. 
Hoje, estamos presente em mais de 300 favelas do Brasil e em 2020 atendemos mais de 500 mil pessoas.


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Eu acredito que ninguém cai num buraco à toa. Se eu não tivesse vivido a experiência de nascer numa favela, de crescer na periferia, de ter os meus direitos sociais negados, de ser filho de um homem envolvido com o crime, provavelmente eu não teria tido a oportunidade de criar um propósito tão poderoso. Com o amor da minha mãe, eu transformei a minha dor em uma causa. As experiências difíceis da vida não servem só para trazer dor e sofrimento. Elas servem pra gente criar algo relevante. 


Todos os dias alguém passa por um luto, se divorcia, descobre uma doença grave, um negro sofre preconceito racial, uma mulher é assediada sexualmente, filhos choram pela ausência dos pais, empresários vão à falência. Rico ou pobre, todo mundo tem encontros e desencontros. Se tornar uma pessoa amargurada diante de uma dificuldade é o caminho mais fácil e óbvio.

Mas, eu percebo que quando as pessoas transformam uma dor em propósito, todo aquele sofrimento e rejeição passa a ser irrelevante. Eu aprendi que feridas cicatrizam. A dor é um ótimo combustível para a mudança. E o propósito dá pra gente a possibilidade de fazer as pazes com o passado e ser livre pra ir atrás do que a gente acredita.


Eu usei as minhas feridas para curar as outras pessoas. Não foi nem um pouco fácil de fazer. Mas eu consegui. Quando me perguntam qual foi a parte mais difícil de romper com a realidade da pobreza na qual eu vivia, eu respondo que era acreditar nas palavras da minha mãe: “Não importa de onde você vem, mas pra onde você vai”. O meu desafio não estava fora, mas estava dentro.


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Vera Iaconelli: A experiência do Edu é muito significativa porque mostra como a fala de uma mãe pode ser determinante, pode ser uma fonte de inspiração e de identificação para que a criança saia daquele ambiente no qual ela nasceu e sonhe com outros espaços. O Edu consegue ali se imaginar num outro ambiente, que ele chama de elite, e estando lá não refugar. Ele toma uma decisão na hora que ele diz: "Bom, eu posso fugir, eu posso ficar acabrunhado aqui no canto ou posso estar".

E ele escolhe - é importante a questão da escolha aí. É importante também perceber que na hora que ele percebe que foi determinante pra ele poder assumir quem ele era e a história dele, que ele podia também transmitir para outras crianças. Não ser determinado pela origem, que é a mensagem que a mãe transmite para ele e ele transmite pros demais e que é a grande sacada da história do Edu: que a gente vem de algum lugar, mas que a gente pode se reinventar a partir de escolhas novas. 

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Geyze Diniz:
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