Para Inspirar

Drauzio Varella em “Escolhas que mudam vidas”

Ouça e leia o episódio da nona temporada do Podcast Plenae, conheça a história do médico Drauzio Varella, que encontrou sua missão de vida nos corredores dos presídios.

18 de Setembro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


Drauzio: Eu sou médico voluntário no sistema prisional de São Paulo há 33 anos. Atualmente, eu só pratico a medicina na cadeia. Eu parei de atender pacientes na clínica particular, depois de 45 anos de atividade intensa e ininterrupta. Eu hesitei bastante antes de tomar essa decisão, porque eu não conseguia me imaginar sem aquela correria com os pacientes no hospital, etc. O que me fez decidir foi o fato de que o meu trabalho na área de educação em saúde se tornou cada vez mais abrangente. Os clientes que eu atendia no consultório são pessoas que têm condições financeiras boas e que podem contratar outros médicos. Tá cheio de gente competente nessa área hoje, a minha ausência não faria a menor diferença. Mas na penitenciária e na comunicação, aí eu posso fazer a diferença.


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Geyze Diniz: Prestes a completar 80 anos, Drauzio Varella continua sua caminhada nutrindo seu propósito: transformar a vida por meio da educação e da medicina.
Trabalhando em presídios diretamente com a população carcerária ou repassando conhecimento através de veículos de comunicação que atingem a grande massa, Drauzio segue seus projetos e nos mostra que a idade não pode ser impeditivo para fazer ou deixar de fazer algo, como ele mesmo diz. Conheça a trajetória exemplar e inspiradora do médico Drauzio Varella. 

Ouça no final do episódio as reflexões da Neurocientista Claudia Feitosa-Santana para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é  o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se

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Drauzio: No começo dos anos 80, quando surgiram os primeiros casos de aids no Brasil, a imprensa tratava a aids como “peste gay”. O preconceito contra os homens homossexuais ganhou dimensões avassaladoras. Eu fui a Estocolmo participar de um congresso sobre o HIV em 1985. Na última palestra do evento, o diretor do programa da aids da Organização Mundial da Saúde projetou um slide com uma frase da “Divina Comédia”. Dizia assim: “No inferno, os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempos de crise”.


Terminou a palestra e eu fui a pé pro hotel. Era uma dessas tardes intermináveis do verão sueco, em que uma luz alaranjada cai sobre as construções da cidade velha. Eu andei a esmo pelo menos por uma hora, com a frase do Dante Alighieri na cabeça. E eu pensei daqui a  20, 30 anos uma neta ou um neto pode me perguntar: “Vô, vocês sabiam que era um vírus sexualmente transmissível, mortal, e não explicaram pra sociedade?”.


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Quando eu voltei pro Brasil, eu fui visitar o meu amigo Fernando Vieira de Mello, que dirigia o jornalismo da rádio Jovem Pan, que era muito diferente dessa de hoje. Eu falei com ele sobre a gravidade do problema que estava por vir. Ele me interrompeu e disse: “Ah, vamos gravar isso que você tá dizendo!”. 


Eu tomei um susto. Naquela época, médicos sérios não falavam nos meios de comunicação de massa. Os que apareciam eram aqueles cirurgiões plásticos de reputação duvidosa que participavam de programas vespertinos de baixa qualidade. Mas naquele momento eu achei que não podia deixar de falar da doença.


Nós gravamos uma entrevista longa, na qual eu descrevi as formas de transmissão do HIV, o quadro clínico da doença e os caminhos que o vírus começava a percorrer no Brasil. Duas ou três semanas depois, encontrei um amigo na Avenida Paulista, ele disse tinha me ouvido na Jovem Pan no dia anterior. Respondi que ele tava enganado, que eu tinha feito essa entrevista semanas atrás. Ele insistiu que não.


Eu procurei o orelhão mais próximo e telefonei pro Fernando. Ele contou que tinha dividido a entrevista em pequenos fragmentos, pra transmitir na programação do dia e atingir mais gente. Eu não acreditei e falei: “Você não devia ter feito isso sem falar comigo. Médicos bons não aparecem nos meios de comunicação. Eu vou ficar mal afamado entre os meus colegas”. Ele respondeu com a frase que abriria um novo caminho na minha vida profissional: “Se é assim, você precisa decidir se quer ajudar a população a evitar a doença ou ficar bem com os seus colegas”.


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As mensagens que nós divulgamos na Jovem Pan tiveram grande repercussão nos anos que se seguiram. Nós estávamos em 1988. O Fernando me disse: “Um dia você vai fazer esse trabalho na TV Globo. Eu disse: “Como assim, Fernando? Que ideia é essa?” E ele disse: “É porque tudo começa no rádio. O que deu certo no rádio acabou na televisão: as novelas, os jornais, os programas de entrevista, de auditório, os humorísticos, os musicais”. De fato, onze anos mais tarde, eu recebi o convite da TV Globo pra falar sobre saúde no Fantástico. Nas mensagens que eu transmito hoje pelo Youtube, Instagram, Facebook, Twitter e até pelo Tik Tok, eu procuro seguir o formato idealizado pelo Fernando Vieira de Mello 40 anos atrás. O cara era um gênio. Ele conseguiu encontrar um formato que se manteve o mesmo até para um meio de comunicação que não existia na época, que era a internet. 


Foi uma outra gravação educativa que me abriu outro capítulo na minha vida: o trabalho voluntário em presídios. Em 89, eu entrei pra fazer um vídeo sobre aids na Casa de Detenção de São Paulo, conhecida popularmente como Carandiru. Aquele lugar era uma cidade, eram 7 pavilhões que chegavam a abrigar 8.000, 9.000 homens.


Vem da infância essa minha atração por filmes de cadeia. Eu adorava assistir aos filmes de presidiários que planejavam fugas cinematográficas, nas salas de cinema do Brás, o bairro onde eu nasci e cresci. A mesma tensão que me eletrizava no cinema tomou conta de mim quando eu entrei na Detenção. O bater das portas de ferro, os guardas com metralhadora nas muralhas, os presos de calça cáqui soltos nos pátios, os carcereiros, os doentes com aids em fase terminal não me saíram da cabeça nas semanas seguintes. O impacto do Carandiru foi enorme. 


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A ideia fixa me fez voltar à Detenção pra sugerir ao diretor, José Ismael Pedrosa, na época, uma pesquisa sobre a prevalência de HIV no presídio, que seria o embrião de uma atividade de atendimento como médico voluntário à população carcerária. Eu tinha 47 anos e uma carreira bem estruturada como médico oncologista. Gostei tanto da experiência na detenção, que nunca mais parei.


De cara nós fizemos um estudo com os presos que recebiam visitas íntimas, eram mais ou menos uns 1.500, 17,3% estavam infectados com o HIV. Mais de 90% deles foram infectados pelo uso de cocaína injetável, que era a droga da moda. Como a sociedade enfiava lá dentro 1.500 mulheres todo o fim de semana, pra transar com aqueles caras sem saber que eles estavam infectados? Sem dar nenhuma proteção pra elas, sem distribuir camisinha?

E quando levei esses dados a diversas autoridades do sistema penitenciário, ouvi as respostas de que seria absurdo distribuir preservativos gratuitos. Eles diziam: “Pra quê? Pra vagabundo fazer sexo na cadeia?”. Eu tive a certeza de que a má vontade era por se tratar de mulheres pobres, em sua maioria, pretas. Ainda levaria seis ou sete anos pra gente conseguir distribuir camisinha nos dias de visita em todos os pavilhões.


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A cadeia dominou o meu espírito. Minha mulher me disse que nunca tinha me visto tão calado. Foi no Carandiru que eu comecei a ver as primeiras mortes por esfaqueamento. É lógico que eu tinha visto mortes violentas no Hospital das Clínicas, no meu tempo de estudante. Mas no Carandiru era rotina. 


Eu lembro de uma segunda-feira em que eu atestei o óbito de quatro meninos esfaqueados. Quando eu peguei o metrô à noite pra ir pra casa, eu fiquei tentando lembrar a fisionomia dos quatro. Eu não consegui identificar um deles, não lembrava nem se ele era branco ou negro. A violência quando é repetitiva, cega a gente.


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Eu fiquei no Carandiru até a implosão da cadeia, que foi um espetáculo que eu não gosto nem de lembrar. Na época, eu senti como se uma parte da minha vida estivesse terminando ali, e na verdade terminou mesmo.


Em 2002, quando a Detenção foi implodida, eu passei a atender na Penitenciária do Estado, que depois seria transformada numa cadeia feminina. Já no primeiro dia, eu falei: “Preciso esquecer tudo o que eu aprendi nesses anos nas cadeias masculinas e começar tudo de novo”. Na cadeia feminina, eu aprendi o que era realmente a condição feminina. Entendi o massacre que a sociedade brasileira faz com as mulheres, especialmente com as mais pobres, mas não só com elas.

Entendi que algumas mulheres só têm liberdade sexual na cadeia. Olha a contradição. É que na prisão, ela pode fazer o que que quiser. Pode namorar outra mulher, pode fazer o papel de marido, pode fazer o papel de esposa, pode cortar o cabelo feito o homem, pode deixar os pelos do corpo crescerem. Não tem repressão. 


Eu permaneci na feminina até 2020, quando chegou a pandemia do coronavírus. Em 2022, voltei aos presídios masculinos, dessa vez como voluntário no Centro de Detenção Provisória do Belém, na zona leste de São Paulo. Eu sou o único médico da cadeia, tem mais de mil presos aguardando um julgamento. Não é fácil contratar profissionais dispostos a trabalhar no sistema penitenciário.


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Hoje, eu agradeço a clarividência e a determinação que eu tive aos 47 anos de idade ao encontrar esse caminho. Impossível imaginar quem eu seria agora se não fosse o contato com esse mundo que transformou a minha vida pessoal, a forma de entender a sociedade, o país e as paixões humanas.


A tendência nossa é sempre conviver com os iguais, com pessoas parecidas com a gente. Se possível da mesma faixa etária, classe social, situação financeira e candidato à presidência da república. Quando você está entre os seus semelhantes, tem segurança de que não vai acontecer nada desagradável. O que é ótimo, claro. O problema é que você começa a ver a realidade do mesmo ângulo o tempo inteiro. As pessoas vão te falar coisas com as quais você concorda e, inclusive, já sabia. Você perde espaço pro contraditório, pro desencontro, pra outras formas de enxergar a realidade. As consequências são: a perda da empatia, o desinteresse pelo outro, o conformismo e o medo de mudanças. A cadeia é uma experiência tão enriquecedora, que eu não consigo ficar sem ela.


Hoje, eu só pratico medicina clínica na cadeia. Estou com 79 anos e, na medida que o horizonte se encurta, aumenta a necessidade de nos concentrarmos no essencial. Nessa fase da vida, prefiro me dedicar mais ao trabalho educativo, porque ele atinge muito mais gente. O impacto dos programas que nós fizemos no Fantástico sobre o cigarro, por exemplo, que foi em 2011, reduziu o número de fumantes significativamente. Até hoje eu encontro gente que parou de fumar quando viu a comparação entre um pulmão saudável, rosadinho, bonito, e o de um fumante, que parecia coberto de piche. Recentemente, nós fizemos um programa sobre o cigarro eletrônico que repercutiu na internet entre a molecada. O impacto da prevenção é imensurável.


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Eu não me imagino parado, de chinelo esperando a morte chegar. Eu prefiro inventar coisas, produzir, estar vivo. Tenho o privilégio de uma genética que me permitiu chegar até aqui e com alguma sabedoria pra procurar novos caminhos. Estou com saúde, o que eu atribuo a duas decisões: ter parado de fumar aos 36 anos e começado a correr maratona aos 50. Quando eu comecei a treinar, eu queria provar pra mim mesmo que não estava ficando velho. Envelhecendo sim, claro, todos nós estamos. Atualmente, eu to treinando pra participar, não sei aí, pela vigésima ou vigésima quinta maratona. Eu perdi as contas.


A vida só vale a pena quando ela está preenchida de ideias e projetos. Idade não pode ser impeditivo para fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Se você tem força física, disposição e habilidade, toca em frente.


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Claudia Feitosa-Santana: Drauzio Varella compartilhou relembrou as escolhas cruciais em sua construção e foram tão sincronizadas com seu propósito que ele nem consegue se imaginar sem elas. 

 

Você também faz escolhas congruentes com seu propósito ou para descobri-lo? Em retrospectiva, as boas escolhas sempre parecem óbvias. Porém, na hora da decisão não há garantia de felicidade nem de sucesso. Além disso, uma escolha implica em pelo menos uma não-escolha. Por tudo isso, uma boa tomada de decisão respeita o sentimento que é  formado pela emoção e razão juntas. 

 

Para estar sincronizado com seu propósito, busque continuamente superar a polarização da razão versus emoção para que você seja verdadeiramente sapiens, pois tu és eternamente responsável por aquilo que sentes.

 

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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Para Inspirar

Aline Borges em "Recebi uma segunda chance para viver"

Conheça a história de como uma experiência de quase morte se conectou com o divino, na décima quarta temporada do Podcast Plenae.

26 de Novembro de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo

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Aline Borges: A sensação de paz que eu tive na outra dimensão foi a mesma que eu tenho quando eu comungo. Eu realmente me sinto conectada com Deus quando eu recebo a hóstia na missa. O padre me disse que essa é a verdadeira comunhão. E eu falei pra ele: “Se é assim, então eu estive com Jesus quando eu fui pro céu”.  


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Geyze Diniz: Por ser enfermeira, Aline Borges conseguiu identificar que tinha a Síndrome de Guillain-Barré a caminho do hospital. Em seu período de internação, ela viveu uma experiência de quase-morte onde viu não só o passado, mas também o futuro. Hoje, Aline enxerga que ganhou uma nova chance de viver e quer tirar o máximo proveito dela. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 


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Aline Borges: No dia 2 de janeiro de 2021, eu acordei de madrugada sentindo uma dormência nas mãos e nos pés. Eu achei que tinha dormido de mal jeito, e deixei pra lá. Nesse dia, eu estava com a minha família em Grussaí, é uma praia que fica a uns 20 minutos da onde eu moro, em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro. Quando amanheceu, eu me sentia nauseada, meio tonta, nem café eu quis tomar – eu amo café! Mas, como tinha acabado de passar o Ano Novo, eu pensei: “Deve ser ressaca. Vou tomar uma dipirona”.  


Só que o mal-estar foi aumentando. A dormência das mãos subiu pros antebraços, até chegar nos cotovelos. A dos pés avançou para as pernas. Eu sentia como se tivesse umas formiguinhas andando sobre a minha pele. O meu marido, que é ginecologista, falou assim: “Vamos andar, porque pode ser circulação”. A gente caminhou um pouco e eu senti fraqueza.  


Eu sou enfermeira e eu gosto do hospital pra trabalhar, não pra ser paciente. Eu não sou aquela pessoa que corre pro hospital por qualquer coisinha. Eu sou resistente pra caramba. Eu tive uma cólica renal e eu continuei trabalhando. Eu dava plantão de 24 horas grávida de 8 meses. Mas, nesse dia, eu pedi pro meu marido pra me levar pra emergência.  


No caminho, eu lembrei de algumas doenças raras que eu tinha aprendido na faculdade. São conteúdos que a gente estuda por alto, mas alguma coisa ficou na memória. Aí eu comentei com o meu marido: “É síndrome de Guillain-Barré. Corre, porque eu vou parar!”  


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Guillain-Barré é uma doença autoimune, ou seja, o próprio corpo se ataca. Nesse caso, o alvo dos anticorpos era a bainha de mielina, uma camada de gordura que protege os neurônios. A doença, ela causa dormência, fraqueza e, nos casos mais graves, como o meu, paralisia. Só que o neurologista que estava de sobreaviso no hospital não acreditou que fosse Guillain-Barré. Ele disse pro meu marido que eu estava dando um "piti" e me liberou pra casa, mesmo a gente insistindo na internação.   


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A gente voltou pra casa em Campos e, pouco tempo depois, eu caí no corredor, em cima do Zidane, meu cachorro. Eu já não tinha forças pra me levantar. Aí, eu me desesperei, porque eu sabia o que estava acontecendo. Quando a dormência chegasse no meu diafragma, eu não ia mais respirar. A síndrome estava avançando muito rápido! 


O meu marido me tirou do apartamento de cadeiras de rodas e me levou pro mesmo hospital. Lá na emergência, eu pensei: “Se eu não fizer um escândalo, eu vou morrer”. Eu lembro que eu batia no peito e gritava: “Me entuba! Me entuba! Eu não tô respirando! Me entuba!" Essas foram as últimas palavras que eu lembro de ter falado, antes de perder a consciência.  


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Eu acordei do coma uns 12 dias depois e, a primeira coisa que eu pensei, foi: “Eu não morri”. Eu tentei me mexer e não consegui. O suor escorria de tanto esforço que eu fazia pra mover qualquer parte do corpo. Não mexia nada, nem um dedo. Aí que eu fui começando a me situar.  


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A minha boca estava aberta, então isso significava que eu estava entubada. Pelos barulhos, eu percebi que eu estava na UTI. Eu consegui mexer um olho só um pouquinho e vi seis bombas de infusão e pensei: “Meu Pai eterno, eu tô com seis medicações fortes!”


A síndrome de Guillain-Barré, ela não afetou a minha mente. Eu não conseguia me mexer, mas a cabeça não parava um minuto. Eu sou agitada, faladeira, tô sempre em movimento. E, de repente, eu tava presa no meu próprio corpo. Foi a maior sensação de impotência que eu já senti na vida. Eu me sentia refém de mim mesma. 


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O que me ajudou nessa hora foi a fé. Se eu não acreditasse em Deus, eu acho que eu tinha pirado. A oração é a arma mais poderosa que a gente tem, e ela é de graça. Eu orava muito. Eu tinha dor no corpo inteiro. Por eu ter ficado tanto tempo em coma, colocaram um colchão pneumático, aquele que enche de ar, pra evitar ferida. Às vezes, eu me sentia engolida naquele colchão. Era horrível, mas como que eu ia reclamar?


Até que eu bolei uma estratégia pra chamar atenção. Eu pensava em situações horríveis, tipo uma barata subindo no meu pé ou os meus filhos sendo sequestrados. Eu sabia que, assim, os meus batimentos cardíacos iam subir, a respiração ia ficar ofegante e a saturação ia cair. Aí, o aparelho ia apitar e alguém iria ver o que estava acontecendo. Meu marido me ajudou a desenvolver um método de comunicação piscando o olho. Uma piscada era “sim”, duas era “não”. Com muita luta, eu conseguia me comunicar minimamente. 


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Os médicos tentaram tirar os tubos, mas os meus pulmões e o diafragma ainda não tinham forças pra eu respirar sozinha. Depois de 16 dias de internação, eu passei por uma traqueostomia, uma pequena cirurgia pra facilitar a entrada do oxigênio, onde o tubo é colocado por uma abertura no pescoço.  


Uma amiga minha, que é anestesista, ela fez questão de participar da operação. Eu me lembro que, quando ela começou a aplicar a anestesia, ela falou: “Amiga, relaxa, tá tudo bem. Você vai apagar e a gente vai fazer o procedimento, tá?”. Eu pisquei uma vez. E aí, logo em seguida, eu vivi a experiência mais linda da minha vida. 


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De repente, eu não estava mais deitada na maca. Quer dizer, eu estava, mas era só o meu corpo. Eu me sentia fisicamente em pé, do lado da minha amiga.  


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Em qualquer hospital, o monitor que mostra os sinais vitais fica atrás do paciente e de frente para os médicos. E aí, como o meu ângulo de visão era de pé, eu olhei o monitor e eu vi que a minha pressão arterial estava em 4 por 2. A normal é 12 por 8. E eu pensei: “Cara, eu vou parar…”. E parei mesmo. 


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Na minha cabeça, eu falei assim pra minha amiga: “Bicho, faz alguma coisa”. Nesse momento, ela pulou em cima de mim e começou a massagear meu peito, com bastante força e gritava: “Você não pode parar! O outro médico, que estava ambuzando, ou seja, fazendo ventilação mecânica em mim, falava: “Ela é sua amiga, você não tá bem. Deixa eu fazer isso, você vai quebrar a costela dela. Vem ambuzar”. Até que ele convenceu a minha amiga a deixar que ele massageasse o meu peito. 


Eu via aquela cena com a consciência de que eu tinha morrido. Mas nem por isso eu me sentia nervosa, amedrontada ou preocupada. Eu estava numa boa. Eu, que não perco a piada nem morta, lembro que olhei pros meus pés na maca e pensei: “Pelo menos a unha tá feita”. 


Enquanto os médicos tentavam me reanimar, eu senti que alguém me chamava pra ir pra outro lugar. Tinha uma presença forte do meu lado direito. Eu não conseguia me virar, então eu não vi quem era. Mas eu sentia que ele era alto, forte e muito cheiroso. Sabe aquele cheiro de lençol que acabou de ser lavado? Era um perfume assim, que te abraça. Um cheiro de paz. 


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E esse ser me conduziu pra outro local. Ele não falava nem apontava nada, mas eu entendia pra onde eu tinha que ir. A gente foi pro lado de fora do hospital. E ali, diversas passagens da minha vida começaram a ser projetadas numa espécie de tela. Na hora, caiu a minha ficha: “Morri mesmo”.  


Pra mim, aquele era o telão do Juízo Final. Era como se passasse um filme com todos os erros que eu já cometi, dos mais bobos aos mais importantes. Cada vez que aparecia alguma coisa errada, eu sentia um peso no meu ombro direito. Tipo: “olha isso. Presta atenção!”  


Eu sou muito brincalhona e vi como brincadeiras bobas que eu fiz chatearam outras pessoas, sem que eu percebesse. Apareceu, por exemplo, uma cena de um comentário que eu fiz sobre a blusa de uma amiga de infância. E aí ela foi embora chateada. Dessa experiência, ficou a lição de ouvir mais e falar menos.


Outra lição foi a de expressar melhor os meus sentimentos pelas pessoas que eu amo. Eu percebi que eu perdi muitas oportunidades de falar “eu te amo” pro meu pai, pro meu avô e pra amigos que já não fazem parte da minha vida. Mas, o filme não mostrou só o passado. Ele projetou também o futuro.  


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Apareceram coisas que aconteceriam meses depois. Uma delas foi a morte de um parente. Foram situações que eu nunca poderia prever. Quando o filme acabou, eu fui puxada como um ímã pra outro lugar mais elevado. Foi tão rápido, que eu só senti o meu cabelo voando. Nessa outra dimensão, não tinha limite de chão, de parede, de teto.


Ao mesmo tempo, eu não tava flutuando, eu andava. Era um lugar muito, muito claro, onde não tinha dor, não tinha angústia. No hospital, eu sentia muita dor e muita angústia. Mas ali eu estava feliz. Eu queria ficar lá! E aí, apareceu na minha frente o meu avô materno, Joaquim, que já é falecido. Ele cuidou muito de mim na minha infância. A minha mãe trabalhava em três períodos e o meu pai morreu quando eu tinha 11 anos.


O meu avô me contava histórias, me dava banho, me dava comida, fazia lição de casa comigo, penteava meu cabelo. No fundo do quintal dele tinha um pé de jambo. Quando a árvore dava flor, ele me chamava pra ver o tapete cor de rosa que cobria o chão. Eu devia ter uns 7 anos, mas eu lembro que eu adorava pisar naquelas florzinhas. Eu era apaixonada por ele e eu morro de saudade! Cuidei dele até seus últimos dias.


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O meu avô estava bem na minha frente, agachado no chão, com os braços abertos e um sorriso no rosto. Igualzinho ele fazia quando eu era criança. O meu avô era descendente de indígenas e tinha um cabelo bem liso, que escorria no rosto. Aí, eu estava indo abraçar ele, toda feliz, quando uma mão me segurou.


Eu fiquei muito enfurecida, porque o ser que estava comigo não me deixou abraçar o meu avô. Nessa hora, ele me segurou com mais firmeza, apertando o meu ombro pra baixo. Foi o único momento em que ele disse alguma coisa: “Calma, minha filha. Tenha calma. Não chegou a sua hora”. 


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Não tinha chegado a minha hora mesmo. Os médicos conseguiram me reanimar e eu acordei no hospital, de volta na UTI. Mais tarde eu entendi que, se eu tivesse abraçado meu avô, eu estaria me entregando pro outro plano espiritual.  


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Esse fenômeno que eu vivi é o que a ciência chama de experiência de quase-morte ou EQM. Os cientistas não sabem explicar como ela acontece. Muitas pessoas que sofrem paradas cardíacas têm relatos parecidos com o meu. Eu fiquei quase 1 minuto sem batimento cardíaco. Eu estava clinicamente morta. Como é possível que a minha experiência do outro lado tenha durado só 60 segundos? O tempo cronológico daqui não é o mesmo de lá, porque a quantidade de coisas que eu vivenciei não cabe em 1 minuto.  


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Depois da traqueostomia, eu ainda fiquei mais duas semanas no hospital. Enfrentei uma longa batalha de recuperação, fazendo fisioterapia três vezes ao dia. Quando eu tive alta, passei quatro meses com homecare até voltar a andar e conseguir um pouco de autonomia. Um mês depois, meu sogro querido, que era um pai para mim, fez um AVC hemorrágico por causa da Covid e faleceu. Foi uma porrada muito grande, sabe? Eu mal tinha me recuperado e ele se foi… 


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Hoje estou vivendo no meu novo normal, com as sequelas que ficaram. Lavar o meu cabelo sozinha, por exemplo, é sempre um desafio, porque eu não tenho força. Eu faço terapia, academia e dieta anti-inflamatória. Tem dias que eu não consigo sair da cama de tanta dor. No início, eu sentia uma grande revolta. Por que eu tive que passar por tudo isso? Por que eu?  


Os médicos concluíram que o gatilho da Guillain-Barré foi uma diarreia que eu tive no Natal, causada por uma bactéria chamada Campylobacter jejuni. Tem tanta gente no mundo, por que logo eu fui ter uma doença que afeta uma pessoa em cada 100 mil? 


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Depois de muitas conversas com o padre da minha paróquia e com uma amiga espírita, eu entendi que eu fui escolhida pra passar por tudo isso. Aquele ser que estava comigo na outra dimensão, pra mim, era Jesus Cristo. A minha fé, que já era forte, triplicou depois da doença e, principalmente, depois da EQM. Eu só não morri, porque Deus quis assim. 


A neurologista que me acompanhou não acreditava que eu sobreviveria. Ela me falou depois: “Você é um milagre, porque a ciência não explica o fato de você estar viva”. Eu acredito que existe um propósito pra eu ter voltado da parada cardíaca com a minha consciência intacta. E o maior deles é alertar as pessoas sobre as doenças raras. 


No meu Instagram, eu ajudo quem teve síndrome de Guillain-Barré. Ajudo também parentes, cuidadores e amigos dessas pessoas, nem que seja com uma palavra de carinho. Eu me tornei voluntária de uma associação da Califórnia que estuda doenças raras. Todo mês, eu tenho uma reunião com estudantes de medicina do mundo inteiro. O objetivo dessas conversas é alertar os futuros médicos sobre diagnósticos pouco comuns e, assim, melhorar a vida dos pacientes. 


Tem gente que morre sem saber o que tem. Morre sem ser atendido corretamente. Eu tive muito privilégio de identificar o que eu tinha. Eu nunca tinha me sentido especial antes, porque eu achava que era uma crença soberba. Mas, eu aprendi que eu posso, sim, me sentir especial. Deus me deu uma segunda chance pra viver e eu quero fazer valer essa oportunidade. 


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